Como funcionam os mecanismos da memória

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É bastante comum que as pessoas adultas sejam capazes de acessar poucas memórias de antes dos 5 ou 6 anos de idade, que é quando a frequência e a ordem das lembranças nos parecem ficar mais organizadas. Isso não significa, porém, que o registro dos demais acontecimentos tenha se perdido em nossa mente. Trazemos tudo gravado no inconsciente. Tudo está lá, guardado, mas com acesso restrito.

Isso, por um lado, nos ajuda no dia a dia. Com menos informações soltas na cabeça é mais fácil lidar com o que precisa de atenção imediata. Se ficamos o tempo todo nos lembrando do passado nos distraímos das tarefas do presente. O efeito seria ainda mais intenso se fossem memórias negativas. Não por acaso costumamos trancar os traumas no fundo do inconsciente, evitando a todo custo que venham à tona.

Por outro lado, muito do que nos constitui enquanto sujeitos deriva das situações infantis esquecidas, sejam boas ou ruins. As emoções pelas quais passamos não desaparecem, mas podem ficar sem direção. Não sabemos mais qual evento nos causou medo, raiva, alegria, prazer. Então repetimos comportamentos, na tentativa de direcionar os sentimentos e dar sentido a algo inacessível.

As duas forças do Inconsciente

São duas as forças do nosso inconsciente que fazem essa regulação do que lembramos e do que esquecemos.

A primeira força atua para nos fazer lembrar de tudo aquilo que é marcante em termos emocionais. Para o bem ou para o mal, as memórias que permanecem depois de muitos anos costumam ser aquelas relacionadas às emoções mais intensas. Momentos de descoberta, alegria, novidade, choque, medo, raiva, e assim por diante. Tendemos a nos lembrar desses fatos com mais detalhes, mais sensações.

Por outro lado, há outra força, a do recalque, que tenta se livrar das memórias que nos causam sentimentos ruins. É uma força de defesa, pois nossa mente quer evitar ao máximo o sofrimento, assim como as lembranças que trazem dor.

Porém, isso só dá certo até certo ponto. Uma memória negativa muito forte entrará num conflito entre as duas forças e poderá acabar fragmentada, distorcida ou encoberta por outras memórias que, de alguma forma, se relacionam com ela. O sentimento também ficará mais ameno, mas ainda presente, às vezes deslocado da causa original.

Ou seja, aquele trauma que está aparentemente enterrado no fundo do inconsciente na verdade está trazendo outros conteúdos à tona e não deixa de produzir certo sofrimento, sem levar em conta outros sintomas.

Nesse jogo entre as forças de lembrar e de recalcar acontecem alguns efeitos curiosas na maneira com que lembramos de eventos. Já perceberam que algumas das nossas lembranças mais antigas repassam na nossa mente como se fossem cenas de um filme em que nós somos só mais um dos personagens? Não lembramos da cena vista pelos nossos olhos, do nosso ponto de vista, mas como se a olhássemos de fora.

Isso acontece porque muitas das nossas lembranças são, na verdade, construções da nossa mente presente, atual. Quando acessamos esse conteúdo fazemos uma junção daquilo que realmente está gravado nos registros das memórias com outras informações, como o que outras pessoas nos contaram sobre a cena, interpretações nossas sobre a época, conceitos fixados que temos sobre coisas do passado, além dos sentimentos que despertamos ao lembrar.

Portanto, memórias muitas vezes são construções, reelaborações mais baseadas no eu de hoje mais do que em fatos reais que aconteceram.
– George Amaral

Isso não significa que estamos nos iludindo ou vivendo de memórias falsas. O que importa é que essa construção diz respeito a questões importantes que estão pressionando nossa psique hoje e que precisam ser curadas.

A memória como uma ferramenta de autoconhecimento

A memória, assim, torna-se uma ferramenta para esse autoconhecimento, independentemente se os fatos realmente aconteceram da forma como são lembrados ou não. O passado não pode ser mudado, mas o que está gravado, construído e interpretado pelo inconsciente pode ser reelaborado. Mudamos a maneira com que vemos o passado e como isso afeta nosso presente.

Por isso é importante sempre buscar momentos de recordação. Relembre, conte, escreva e, principalmente, não tenha medo de acessar memórias negativas. Pode ser doloroso, mas com o tempo será também libertador.

Descortinar e esclarecer lembranças e entender os sentimentos que elas mobilizaram faz parte dos trabalhos terapêuticos, da busca por autoconhecimento e pela consciência daquilo que nos afeta. Entender e aceitar o passado muda o presente.

Sobre o autor

George Amaral é psicanalista, escritor e editor do Memoralia ateliê de escrita. Colabora na Onemind nos cursos de Cura pela Escrita Intuitiva.

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